quinta-feira

Memórias de um acreano





Mais um dia se foi, mais uma noite vem e eu aqui, aos emboleus. Às vezes a solidão chega a cortar mais que navalha afiada. Mesmo estando cercado de pessoas, o tempo parece ter me transformado em um ser invisível, insignificante. Enquanto eu espero a noite cair, me perco nos meus pensamentos. Tudo o que eu queria era fazer o tempo voltar...
Eu nasci na década de 30, no Seringal Universo. Aos oito anos de idade fiquei sem meu pai. Passei a minha meninice na Colocação Copaíba. A minha vida nunca foi fácil, desde cedo comecei a trabalhar para ajudar minha mãe a terminar de criar os meus irmãos.
Parece até um filme em minha mente: relembro da infância, que nem criança direito podia ser - ao invés de brinquedos, enxada; no lugar do lápis e do caderno, uma poronga que me guiava varadouro a dentro rumo ao meu fruto de esperança. Estreei no corte trabalhando de "meia" com o meu cunhado para aprender a lida com a seringueira. Naquela época, cortar seringa e fabricar borracha era o nosso ofício. Quando eu voltava pra casa, não tinha mais ânimo pra nada, chegava com o corpo “muído”.
Em muitas das vezes eu me distraía querendo brincar. Pegava o talo da palha do açaí, inventava um cavalo e saia correndo mata a dentro. Ou então, descia o terçado num pedaço de pau e entalhava uma espingarda; depois, pegava folha de taioba e imaginava que tava atirando numa anta.
Eu não tinha tempo pra mais nada, nem pra estudar. E mesmo se tivesse, teria que andar onze horas de viagem para chegar até o barracão onde tinha alguém que soubesse ler. Hoje em dia fico até revoltado quando vejo os meninos que têm a escola quase no quintal de casa, mas não se interessam pelos estudos. Quisera eu no meu tempo ter uma oportunidade dessas! Tenho certeza que teria aprendido a fazer pelo menos o meu nome, coisa que nunca consegui, apesar das vezes que tentei. É por isso que me chamam de broco, não consegui me “desarnar”.
Aos trinta anos eu me mudei para Tarauacá, mas continuei cortando seringa. Trabalhava os cinco dias da semana e no sábado chegava cedo, tomava um bom banho pra tirar o piché da seringa, juntava uns conto de rés, colocava os panos de bunda numa sacolinha e percorria de quatro a cinco horas de viagem pra cair no forró.
Vixe, como eu dançava! Gostava mesmo era de um xote, um xerém; você precisava ver quando eu atracava na cintura da dama e fazia a saia dela rodar. Bailava a noite toda, ia realmente pra me divertir. Enquanto eu arrastava o pé, acompanhava a música ouvindo o fole da sanfona. Hoje não arrisco mais cantar, nem assobiar consigo! "O que faz a voz sair direito é os dentes e esses eu já perdi todos".
Eu era um moço conquistador, a mulherada se encantava com os meus olhos claros. Só fui me aquietar mesmo quando conheci a mulher da minha vida. A gente não se conheceu em nenhum baile desses, mas a nossa história foi uma festa. Não nos conhecemos jovens, mas a gente tinha muita disposição pra viver.
Nos encontramos num momento difícil, ela tinha acabado de ficar viúva. E ainda por cima, tinha uma reca de menino. Eram doze filhos vivos, quase todos crescidos. E os que ainda faltavam criar nós criamos juntos. Apesar de não ter nenhum filho meu, me esforcei pra ser o melhor pai que uma criança pode ter. Além dos filhos, criei muitos netos, bisnetos...
A família era grande, o trabalho tinha que ser dobrado. E mesmo que os moleques se embrenhassem na mata, cortando seringa e apanhando ouriço de castanha, fico aqui rememorando as vezes que passamos algumas dificuldades. Mas como todo bom “caboco” acreano, eu sempre dava um jeito de superar os problemas. E nisso, a minha velha também era craque, sabia muito bem “dribar” os infortúnios da vida. Mesmo doente, ela se virava feito charuto na boca de bêbado.
Em dias em que eu chegava sem nenhuma caça, o jeito era encher o bucho dos curumins com muita garapa. Ou então, a minha velha fazia um arroz doce danado de bom; uns caldos de caridade; uma jacuba... A gente comia até bunda de tanajura com farinha seca, mas sempre ia dormir com o estômago forrado!
Na década de 80 eu vim pra Rio Branco em busca de melhoria. A família ficou em Tarauacá, esperando que eu conseguisse juntar dinheiro e um lugarzinho pra gente morar. Quando a reca toda chegou em Rio Branco fomos morar numa colônia onde tinha um barraco cedido pelo patrão. Lá, até os pequenos tinham que trabalhar plantando cupuaçu ou cuidando dos gados. Nós sofremos demais nessa colônia! Nunca dava pra juntar dinheiro, pois a gente pegava o pagamento do serviço em mercadoria. Só trabalhava feito doido e nunca que ia pra frente. O jeito foi procurar melhoramento na cidade...
... Apesar de tanta luta nós conseguimos criar todos os filhos. Hoje eles estão ai espalhados pelo mundo. Cada um com sua história, sua família, sua vida pra se preocupar. Em muitas das vezes procuro alguém pra conversar, ou pra pelo menos me ouvir; mas ninguém se interessa pela história de um “matuto vêi”, que venceu tantos obstáculos na vida e hoje a solidão e o silêncio são seus únicos companheiros. Minha velha já foi pra junto de Deus e eu continuo aqui, largado aos emboléus.

Uma homenagem aos queridos avós: Maria do Patrocínio de Oliveira e Luiz Pereira de Evangelista.

3 comentários:

O mar me encanta completamente... disse...

Olá minha lindinha, venho me desculpar pela ausencia, mas não estou bem de saude.
Estamos muito traumatizados e tristes com tudo o que aconteceu, (viste la no meu blogue)
Vim agradecer teu carinho,
e dizer que é sempre uma delicia "viajar" aqui no teu cantinho, caminhar por tuas palavras...


Bom fim de semana.

Alma Acreana disse...

Querida Liberdade,
é real demais para ser uma ficção!
Belo texto, digno da premiação. Muitos flash's me passaram pela mente agora, ainda mais que conheço alguns dos lugares falados, como o Seringal Universo no Rio Tarauacá, hoje, abandonado.
Um forte abraço!

Fábio disse...

Ola! Também tenho um blog qdo e c der faz uma visitinha. O endereço é www.ecosdotelecoteco.blogspot.com Um grande abraço e sucesso na proposta aí..